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CIDA, aos sete anos, parecia uma menina como qualquer outra da sua idade. Mulatinha esperta e alegre que nem dava trabalho.
Sua mãe que o diga. Mãe solteira, dois filhos, criava-os com amor, mas sem dengos, que nem tempo tinha para isso. O serviço de lavagem de roupa tomava-lhe todo o dia. Lavar, passar e entregar, receber o dinheiro, comprar comida.
Rodrigo, o mais velho e Cida, formavam, com ela o pequeno núcleo familiar e, fora o cotidiano de morar em uma comunidade e ser pobre, a vida corria bem, até.
O barraco sempre limpo e os filhos com saúde, alimentados e estudando, o trabalho que não podia faltar, essa a preocupação de D. Altiva.
Enquanto o menino vivia de soltar pipas, jogar bola e estudar, Cida, além de estudar, possuía uma mania pouco comum: gostava de formigas. Mais até do que da boneca loura que a patroa da mãe lhe dera no Natal. Gostava de admirá-las em fila indiana, ordeiras, trabalhando, pequeninas e ágeis. Tinha cuidado, quando andava, para não pisa-las. Salvar formigas era o seu forte.
A tigela dágua do cachorro Tico, o vira latas da família, velho e sonolento, era o alvo principal de várias vistorias, pois, de cada vez que bebia água, Tico mergulhava, pelo menos, meia dúzia delas que se debatiam, tentando não se afogar. Então, lá ia Cida. Ajoelhada no chão e usando o próprio dedo a guisa de estaca, ia recolhendo, com cuidado, uma após outra, às vezes, famílias inteiras.
Nos casos mais graves, havia descoberto, com a prática, a eficácia da respiração artificial, isto é: quando alguma demorava a voltar do desmaio, soprava-a, lentamente, repetidas vezes, até que ela estremecia, voltava a si, esticava uma perninha, outra mais e começava a andar, ensaiando uns passos bobos.
Isto era a glória para Cida.
Um gol de decisão em final de campeonato não era tão importante. Havia salvado mais uma! Ela, sozinha, a responsável por mais uma que voltava à vida. Sorria. No fundo, achava que merecia uma medalha por isso. Merecia mesmo!
A mãe não se importava muito com essa mania; afinal, que mal poderia haver nisso? “Era só uma brincadeira”, pensava, “mais nada”.
Mas com o irmão Rodrigo, era diferente. Não perdia a chance de chamá-la de maluca e de se rirem dela, ele e os colegas da pelada dos domingos.
Cida nem ligava. Não estava “nem aí” para os deboches do mano. Sua missão era muito, mas muito mais importante.
A pedido da mãe, uma tarde, quase noite, Cida sobe o morro levando um recado para um barraco mais acima.
No trajeto, a polícia armada espalha-se por vielas e becos, mas, isto ali era comum, quase rotina.
Cida passa ligeiro. De repente, sente uma fisgada forte no pé e instintivamente se abaixa para ver: ora, uma formiga a picara, só isso.
Foi o tempo exato de a bala perdida passar zunindo sobre as trancinhas que a mãe fizera, ainda há pouco.
Tumulto geral.
Corre daqui, corre dali, alguém puxa Cida pelo braço:
-“Sai daqui, menina!” Cai fora logo, pirralha!
Assustada com os gritos, Cida desce o morro correndo. Um homem, encostado no boteco ainda comenta com outro:
-“Eu vi! Se ela não se abaixa, a bala pega! Foi sorte mesmo”.
No dia seguinte quando Cida, pela mão da mãe, vai para a escola, notou que a olhavam diferente, com mais respeito, mas não deu muita bola:
-“Que sorte a dela, por um triz, cara!”
-“O santo dela, ô meu, não é que é forte?!”
Cida sorria. Sabia o que os outros, nem de longe desconfiavam. Nem a própria mãe. Era o seu segredo.
Não foi o santo, não. FORA SALVA PELA FORMIGA.